quarta-feira, 9 de novembro de 2016

DOCE RODOVIA


Céus de algodão branco derretem sutilmente sobre asfalto cinza. Rodovias iluminadas correm na contramão. Serpentes, vindas do gramado verde, morrem no meio-fio rubro, tingido pelo espesso sangue que jorra de corpos que ainda insistem em se manter fortes e eretos. Passados surgem no retrovisor, sempre sonolentos e em despedida.
A noite, vagarosamente vai descendo através dos algodões macios. Faróis, placas e fios de alta tensão estão de partida, e cada vez mais distantes.


Dimitry Uziel
Junho de 2016

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

PORVIR

Olhei dentro do infinito olho do mundo.
Vi estradas e espelhos enterrados sob sonhos acordados.
Vi todos os cães famélicos salivando ao pôr do sol.

Reis cairão, filhos se apegarão às mãos trêmulas e cansadas de suas mães,
com olhares assustados, que deslumbrarão o chão ruir sob seus pés.

Eu vi a boca do mundo salivando.
Vi seus dentes de tamanhos imensuráveis.
Vi sua fome eterna.
Eu vi a língua do mundo lamber a face pálida do porvir...
Senti seu largo nariz farejar nossos medos, e o medo de nossos medos.


texto: Dimitry Uziel

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

FÚRIA E DESCONTROLE


Eu quero a fúria dos céus,
O ardor dos infernos de Dante,
o caos do mundo e seus gigantes
cheios de faces macilentas.
Quero o aroma úmido das tormentas,
sem esperança de bonança.
Quero o poeirento deserto dos cômodos vazios,
os olhos inertes, cheios de dor,
o sabor acre na boca, todo seu amargor.

Vou olhar, de longe, o fogo arder, se espalhar
e, quando não houver mais nada para queimar
voltarei a caminhar, com o corpo febril,
as mãos suadas e a mente em total descontrole.

texto de Dimitry Uziel
arte: La diosa de la tormenta, de J. R. Rey

terça-feira, 1 de novembro de 2016

SILÊNCIOS


Eu escrevia silêncios, noite a dentro, estrada escura.
Eu via vertigens, miragens e transbordava o peito cheio de estranhos sentimentos.
Neblina densa, impenetrável.
Olhos fantasmas acendiam no breu do caminho
e corriam em direção contrária, de passagem, acenando um triste adeus.

Eu temia todos os silêncios.
Até hoje eles me assombram.
Eu pintava ausências e esperanças tardias.
Hoje, nem vertigens, nem miragens.
A faca da realidade possui dois gumes impiedosos.

A neblina ainda é densa.

arte: Odilon Redon
texto: Dimitry Uziel
Outubro de 2016