terça-feira, 5 de junho de 2012

NADA DEMAIS (trecho de Libertar do Inferno)



(...)

A cidade me parecia a mesma de sempre; prédios, movimentadas avenidas, construções inacabadas pelo governo, casas abandonadas e transeuntes desatentos. As ruas sempre serão as mesmas, até nos sonhos. Só as ondas que nunca estarão no mesmo lugar. Mas as ruas... Enfim... No dobrar de uma esquina morta e sem cor, meu olhar encantado pelo nada, passeava vazio pelo concreto da calçada imunda, até que, atônito, tropecei num daqueles desatentos transeuntes. O bom moço fora simpático, me estendera a mão para ajudar de alguma forma aquele corpo estirado no chão (o meu). Agradeci aceitando a ajuda e pegando em sua mão quente, que ostentava finos dedos de agulha, macios, que mais pareciam de uma delicada donzela.
– Você está bem? Disse o rapaz. – Peço desculpas.
– Sim, sim. Tudo bem!
Ao me levantar, o estranho me fitou profundamente e silenciou com um olhar quase que desconfiado.
– Você não é daqui?! Disse ele.
– Não? Perguntei, olhando para os lados enquanto limpava minha calça.
– Não! Você não é daqui. Venha, vou lhe mostrar a cidade.
Obviamente, eu fui sem saber por que seguia aquela estranha persona.
Há momentos que já não reconhecemos um sonho como deve ser. De tanta “realidade”, ele toma vida própria e caminha sozinho por corredores estreitos e psicodélicos, nos confundindo a todo instante, perdido no tempo irreal. E, ali, na calçada, a caminhar, calado eu pensava: quanto tempo dura um sonho indesejado?
Após tanto silencio, de supetão indaguei:
– Onde mora Deus?
– Ali! Apontou – Vê aquele prédio? Então... É lá que ele mora. Respondeu-me, com uma naturalidade invejável. – Vamos até lá. Só não poderemos entrar.
– Por quê? 
– Ele se isolou do mundo. Dizem que ele vem planejando algo memorável.
– Tipo o que?
– Ninguém sabe. Você conhece as pessoas, sabe como elas são; na primeira oportunidade, fazem uma menção a ele e criam planos que gostariam que ele elaborasse. Disse-me sorrindo, com um suave sarcasmo, o rapaz de pele fina.
Chegando próximo ao prédio, a morada do senhor, eu percebi um clarão descomunal por detrás do edifício. Fui desviando o olhar para desvendar e saciar minha curiosidade tão humana naquele lúdico sonho que parecia tão longo em poucos segundos. Fui me aproximando do branco ofuscante, e já nem me lembrava de olhar o prédio, que era o destino inicial.
            – Aonde vai? Perguntou-me o moço de cabelos negros.
– O que é esse clarão que mal se pode olhar, vindo detrás do edifício?
– Ah. Isso?! Nada!
            – Como nada? Impossível. Chega a irritar a vista.
– Exatamente. Por isso ofusca. Mas ofusca apenas a sua vista. Quer ir até lá? Pode ir. Não verá nada.
– Com certeza não verei. Numa claridade dessas, quem poderia enxergar algo?
– Essa claridade não é de uma luz. É o reflexo do nada.
Não precisei questionar. Meu semblante o fez por mim, com a cara de interrogação.
– Vou explicar. Deus não precisava construir nada além do palpável para o mundo. Ele não precisava construir nada além dele. De sua morada para frente, existe o mundo e o resto. Para trás desse edifício é uma folha em branco, nenhum desenho, nenhum projeto inacabado, nada. Definitivamente nada. O espaço nessa folha era maior do que o necessário para impressionar.

(...)



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